Sobre o caminho. o que nos faz espiritualistas?

Muitas vezes, sentimos que aquilo que percebemos do mundo não nos basta. Há uma sutil inquietação — como se algo essencial estivesse ausente. Não é preciso ser um mestre espiritual para pressentir essas fendas interiores. Esses espaços inominados nos convidam a buscar o que ainda não se revelou. Em paralelo, também notamos falhas no tecido do mundo. Isso nos impulsiona a procurar o que falta, com o anseio de preenchimento antes que o vazio se expanda.

O ser espiritualista leva a sério sua percepção de ignorância. Ele não a evita. Ao contrário: acolhe-a como legítima e reconhece, nessa ausência, a necessidade de algo além da mera percepção sensível.

Por ser tão íntima, essa sensação pode crescer sem limite — e cada pessoa a experimenta à sua maneira. Ainda assim, há algo em comum: todos intuimos que há frestas. E todos, em algum nível, sentimos o chamado para compreendê-las ou atravessá-las.

Como nos aproximamos dessas ausências?

Uma das marcas do caminhar espiritual é a coragem de manter essas lacunas vivas dentro de si, sem negá-las ou encobri-las com respostas fáceis. É essa ousadia — a de permanecer com o desconhecido — que diferencia o espiritualista. Não se trata de buscar alívio ou consolo imediato, mas de sustentar o enigma com firmeza e ternura.

Entre os caminhos possíveis, o conhecimento é um que frequentemente tentamos. Buscamos entender, e assim vamos criando mapas de nossas incompletudes. Mas há um risco sutil: ao nomear o desconhecido, temos a ilusão de dominá-lo. Preenchemos essas brechas com ideias prontas, com valores herdados — e, sem perceber, confundimos presença com preenchimento.

Aí começa o engano. Ao decorarmos o abismo com certezas, esquecemos sua natureza essencial: ele não existe para ser coberto, mas para ser sentido.

Com o tempo, a espiritualidade pode ser confundida com moralismos e dogmas. Regras e conceitos tomam o lugar das lacunas, engessando a experiência interior. Onde antes havia abertura, agora há rigidez. Onde havia um horizonte, ergue-se um muro.

A espiritualidade então se torna um peso. Os caminhos que antes eram soltos e incertos tornam-se trilhas fixas. A leveza se perde, e a paisagem do sagrado se torna árida. Isso não é mais espiritualidade — é moralidade revestida.

O conhecimento que uma vez parecia iluminar agora obscurece. Alimentamos o ego com respostas que nos dão segurança. Caminhamos por narrativas emprestadas, em vez de seguir o mistério com humildade.

Espiritualmente, quando nos apegamos às certezas, sufocamos nossa capacidade de criar, de ver o novo. A interioridade se fecha. Passamos a viver presos em códigos que não traduzem nossa verdade.

Deixamos de sentir o desconhecido, tornamo-nos cegos ao invisível. As frestas desaparecem sob o peso do hábito e das crenças fixas. Não vivemos mais uma espiritualidade viva, mas uma repetição simbólica sem alma.

Às vezes, algo ou alguém nos oferece atalhos. Mas atalhos nem sempre atravessam. Muitas vezes, são correntes suaves que nos mantêm presos a soluções não vividas, a valores que não compreendemos — e que tampouco nos transformam. Tornamo-nos colecionadores de respostas alheias.

Reconhecer novamente esses interstícios do ser exige esforço honesto, cotidiano e silencioso. É preciso abrir mão da falsa segurança do ego, desapegar-se das fortalezas mentais que construímos com tanto zelo. Poucos se dispõem a sair desse abrigo. O apego ao conforto identitário é, muitas vezes, uma forma sutil de covardia.

Abandonar o ideal, questionar o próprio eu, é um gesto de rara coragem. “Quem sou eu?” — não como pergunta teórica, mas como mergulho real. Mais do que negar respostas habituais, é necessário acolher o vazio do eu. Esse é talvez o maior mistério — e também o verdadeiro motor da espiritualidade.

É no silêncio do eu que repousa a fonte mais autêntica da busca interior. Aqueles que trilham o caminho do autoconhecimento precisam desapegar-se até mesmo do saber que já adquiriram. Pois só quando não sabemos é que o enigma se revela. Só então ele nos move.
Para isso, é essencial cultivar a lucidez. Somos conscientes, mas nem sempre lúcidos. Lucidez é a capacidade de discriminar com clareza: o que é real e o que é reflexo, o que é presença e o que é ausência. Ter lucidez é saber quando estamos diante do desconhecido — e não fugir dele.

Esse tipo de discernimento não é o que usamos no cotidiano moral. Lucidez é sabedoria viva, que sabe habitar os contornos do invisível. E para que ela se manifeste, precisamos estar presentes, atentos. Consciência é saber de algo; lucidez é iluminar esse algo com precisão e delicadeza.

Apliquemos esse princípio à caminhada espiritual. O verdadeiro buscador não apressa o preenchimento. Ele observa suas ausências como jardins sagrados e cultiva atenção sutil para proteger suas bordas. O que falta — esse abismo de mistério — é também o berço do novo.

As ausências são incômodas, sim. Mas são também férteis. A lucidez não permite que o desconhecido seja ocupado por certezas antigas. Ela abre espaço para que o inédito floresça.

Consciência. Atenção. Lucidez!

Tiago Sowmy
Tiago Sowmy

Formado em Medicina pela Universidade de São Paulo (USP) em 2005, o Dr. Tiago Sowmy realizou residência médica em Neurologia no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (HC/FMUSP) entre 2007 e 2010, permanecendo no Ambulatório de Doenças Desmielinizantes por dois anos, onde participou de pesquisas clínicas no Centro de Pesquisa do HC/FMUSP.

Artigos: 4

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